
INTRODUÇÃO
Sobre o que escrever quando pedem a um emergencista para falar sobre uma droga? Pois, então, sim. Sobre ela. A queridinha atualmente dos departamentos de emergência, ainda que temida por muitos: a Quetamina, que atinge hoje em seus quase 60 anos sua maturidade de uso em emergências e ainda muito promete com novas propostas de uso.
A Quetamina foi elaborada por Calvin Lee Stevens, em 1962, na procura de um anestésico tão efetivo, mas com menos efeitos adversos do que a fenciclidina (hoje não mais produzida) que causava por exemplo efeitos psicomiméticos (esquizofrenia-like) duradouros. Após os primeiros estudos e uso ao longo dos anos 60, as primeiras apresentações comerciais da Quetamina ainda causavam muitos efeitos adversos.
Apesar do receio médico em sua utilização clínica, ela foi mais amplamente usada e com limiares maiores de doses na Guerra do Vietnam, por conta da sua já conhecida margem de segurança sem causar depressão respiratória. Neste período de sua popularização que se cunhou o termo “analgésico dissociativo”, apesar de seus mecanismos de ação terem sido mais entendidos nos anos 80.
Devido seu uso recreacional ao longo dos anos 90, a Drug Enforcement Administration (DEA), nos Estados Unidos da América, listou-a nas “drogas emergentes”, sendo também conhecida a droga do estupro naquela época. Frente ao marketing negativo, a Quetamina foi sendo colocada para as margens nas escolhas de drogas anestésicas, apesar de manter seu espaço na população pediátrica. Nos últimos tempos, ela vem retomando novamente seu espaço no uso em pacientes de todas as idades e aos seus 57 anos está a pleno vapor, prometendo cada vez mais possibilidades de uso não apenas nos departamento de emergência, mas na medicina em geral.
MECANISMO DE AÇÃO
O mecanismo de ação da Quetamina foi descoberto apenas nos anos 80: antagonista não competitivo do receptor NMDA da glutamina nos sistemas tálamo-cortical e límbico… agora ficou óbvio, não?! Bem, para mim não, mas após pesquisar um pouco, descobri que a Quetamina se liga ao sítio PCP – lembram-se da fenciclidina? Então, sua abreviatura é PCP e descobriram que ela ligava-se a este sítio, nomeando-o, pois, como sítio PCP. Sendo a Quetamina um derivado desta molécula, é neste mesmo sítio que ela se liga, impedindo as ligações do glutamato ao receptor NDMA. Esta é a principal via dos efeitos terapêuticos desta droga como analgésico dissociativo, assim como seus efeitos recreativos psicomiméticos. Ah, e viu-se também que a Quetamina aumenta o potencial analgésico dos opioides através da via Mi. Sabe-se também que os metabólitos da Quetamina, como a Norquetamina, também possuem efeitos terapêuticos, mas isto ainda não está bem estabelecido.
Além deste efeito na via glutaminérgica, a Quetamina possui efeito simpaticomimético que amplia seus efeitos terapêuticos para além da sedoanalgesia, tornando-a uma droga interessante para sequência rápida de intubação (SRI) em pacientes instáveis hemodinamicamente. Seus efeitos em receptores alfa e beta adrenérgicos são efêmeros mas marcantes, tendo tempo de meia-vida respectivamente de 7 min e 2-4 horas.
Por outro lado, em dados experimentais, a Quetamina bloqueia os canais de potássio sensíveis a adenosina trifosfato, o que, em última análise, reduz o efeito cardioprotetor destes canais durante eventos isquêmicos cardíacos. Logo, está aí a contraindicação de seu uso em pacientes cardiopatas.
USO NA PRÁTICA
Tá, mas e daí? O que tudo isso implica no uso prático da Quetamina?
Hoje a Quetamina é um dos principais agentes usados na Sequência Rápida de Intubação (SRI) em conjunto com os bloqueadores neuromusculares. Sua característica de pouca interferência no status hemodinâmico do paciente poderia ser citado como o principal “atrativo” de seu uso. Da mesma forma, vale ressaltar suas características broncodilatadoras, o que a tornam uma boa escolha para pacientes com broncospasmo.
Consoante a esta lógica, alguns estudos têm demonstrado benefício no uso de doses baixas de quetamina (0,5mg/kg) como parte do tratamento de crise de asma na emergência, diminuindo as taxas de IOT por broncospasmo grave na asma. Ainda há poucas evidências e ensaios clínicos de maior qualidade com um número expressivo de participantes, mas os es estudos feitos até o momento são promissores.
Não tão promissores, mas ainda interessantes, são os estudos do uso de Quetamina para a agitação psicomotora nos departamentos de emergência e nos atendimentos pré-hospitalares. Por mais que os resultados entre os estudos sejam por vezes conflitantes, parece que em comparação com o uso de Haloperidol 5-10 mg IM, o uso de 4-6 mg/kg IM de Quetamina tem resposta mais rápida para atingir um nível adequado de sedação – algo entre 8 minutos, contra 13 do Haloperidol -, com o mesmo risco de efeitos adversos graves.
Além destes usos, já há inclusive guidelines para o uso da Quetamina para sedação em procedimentos. Esta vem surgindo como alternativa promissora para redução do uso de opioides. Conforme as diretrizes, as situações em que a Quetamina deve ser recomendada como opção para o manejo da dor aguda são: pacientes com previsão de pós-operatório com dor intensa (ortopédicas, torácicas e abdominais) e para pacientes com risco de depressão respiratória com opioides ou com uso crônico e que possam apresentar resistência aos opioides. Outra proposição interessante do guideline, é o uso em procedimentos dolorosos que possam ser emocionalmente traumáticos, como exame físico em crianças vítimas de abuso sexual. Extrapolando estes usos específicos, cada vez mais tem se usado a Quetamina na emergência para analgesia aguda em pacientes com dor intensa, obtendo-se bom controle álgico, com poucos efeitos adversos e possibilidade de alta após procedimento em 1-1,5 horas.

Tão ou mais importante do que saber os modos de uso de qualquer medicação é saber os seus riscos e contraindicações. As contraindicações trazidas nos guidelines incluem crianças menores de 3 meses e pacientes com esquizofrenia, para os quais o uso da Quetamina poderia desencadear novo quadro psicótico apesar da doença controlada.
As contraindicações relativas para o uso da Quetamina são:
- Risco elevado de laringospasmo e complicações de via aérea – procedimentos que estimulem a faringe posterior (por exemplo, endoscopia digestiva alta), instabilidade ou cirurgia de via aérea superior, infecção de vias aéreas superior
- Risco frente a estímulo adrenérgico – doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca e HAS mal controlada, porfiria, hipertireoidismo
- Risco de aumento da pressão intracraniana – efeito de massa do sistema nervoso central e hidrocefalia
- Risco de aumento da pressão intraocular – glaucoma e trauma ocular
Bem, tendo isso em mente, a Quetamina parece estar atingindo sua maturidade em alguns pontos: a sedoanalgesia, por exemplo. Contudo, ainda há um mundo a se descobrir desta jovem senhora, como seus usos no broncospasmo e da depressão (não trazido neste artigo por ser um manejo não de departamento
E aí? Que tal usar e estudar mais sobre a Quetamina?
Referências:
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EM Basic- Procedural Sedation Part 1
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otimo e pratico material
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