COAGULOPATIA INDUZIDA PELO TRAUMA (CIT)

Estima-se que cerca de 6 milhões de pessoas (muitos deles jovens) morrem por trauma no mundo todo a cada ano, e 40% dessas mortes deve-se a hemorragia.

Mesmo sendo hemorragia uma causa de morte potencialmente evitável as pessoas ainda sangram até a morte !!!!  

Seja porque não chegam a tempo no bloco cirúrgico; ou se chegam no bloco, não é possível estancar o sangramento; ou o sangramento foi controlado porém o choque prolongado foi tão severo que o corpo não consegue se recuperar, além de não receber a terapia transfusional adequada!

Enfim, todos esses fatores combinados fazem com que o choque hemorrágico seja muito difícil de manejar e sua mortalidade se mantenha sempre muito alta.

Nas décadas de 80 e 90 viu-se que os casos de hemorragias refratárias estavam muito associadas com quadros de hipotermia, acidose e coagulopatia (tríade da morte ☠️). A observação frequente desse cenário levou ao conceito da ressuscitação por controle de danos (“Damage Control”), em que a correção definitiva das lesões deve ser postergada, priorizando uma melhora no perfil fisiológico do paciente.

Os estudos sobre a coagulopatia nos politraumatizados teve um importante avanço com a teoria sobre hemostasia mediada pela célula, saindo do modelo simplista de cascata enzimática. Nesse conceito, as células (principalmente as plaquetas e as células endoteliais) possuem papel ativo na regulação e localização das reações de coagulação e hemostasia.

Antigamente a coagulopatia no trauma era considerada uma alteração mais tardia, que ocorria após horas ou mesmo dias do trauma inicial. Em 2003 viu-se que os pacientes já estavam com sua coagulação alterada na chegada, independente da administração de fluidos como cristalóides, e que também poderia se apresentar de diversas formas, em diferentes momentos do curso clínico além de que múltiplas coagulopatia podiam coexistir no mesmo momento, ou seja: não era uma patologia única e possivelmente não poderia ser tratada sempre da mesma maneira. Essa síndrome foi então denominada como coagulopatia induzida pelo trauma (CIT).

A coagulopatia Induzida pelo Trauma é uma disfunção na interação dinâmica entre anticoagulantes endógenos e a hiperfibrinólise/genólise que ocorre imediatamente após o trauma devido a lesão endotelial, hipoperfusão, aumento da expressão da trombomodulina e ativação da proteína C, e está associada com piores desfechos.

Sua principal causa é a formação deficiente de coágulos por mecanismos complexos e tempo-dependentes que podem ser exacerbados pela hipotermia, acidose, consumo dos fatores de coagulação e pela hemodiluição (e não o contrário, como se pensava)

Bom, mas vamos ao que interessa: e na prática, como fazemos?

Até pouco tempo, a rotina de atendimento ao paciente vítima de trauma e em choque hemorrágico era de repor o volume perdido por passos sucessivos, inicialmente com soluções cristalóides ou colóides. Protocolarmente se fazia a reposição de até 2 litros de cristalóides (volumes muito maiores na realidade!!!). Caso após isso o paciente se mantivesse em choque, começaria então a transfusão sanguínea com CHAD, após plasma e depois as plaquetas. Em pacientes que necessitavam de transfusão maciça as provas de coagulação eram realizadas somente após a transfusão, mas qual a confiabilidade desses exames após todo esse manejo?

Recentemente surgiu um novo paradigma no atendimento a pacientes vítimas de trauma e em choque hemorrágico:

  • Administração precoce de hemoderivados (protocolo de transfusão maciça) e controle da coagulopatia
  • Hipotensão permissiva,
  • Minimizar o uso de cristalóides
  • Parar o sangramento o mais rápido possível (cirurgia de controle de danos, torniquete, compressão manual).

Mas primeiro, uma coisa importantíssima: como identificar um paciente com possível hemorragia e risco de coagulopatia?? Não há um consenso ou critérios bem estabelecidos, mas podemos usar sinais, escores e índices para auxiliar no julgamento clínico:

  • Shock index (FC/PAS) > 1
  • ABC score ≥2
  • FAST positivo
  • Sinais de hipoperfusão (pele fria e pegajosa, rebaixamento do sensório, dispneia, oliguria)
  • Mecanismo penetrante de trauma ou cinemática importante

Depois de identificar que o paciente tem sinais de hipoperfusão e está sangrando, se aciona o protocolo de transfusão maciça. E qual a definição de transfusão maciça?

  • > 10 unidades de CHAD em 24 h
  • Troca da volemia de um paciente em 24 h
  • Administração de 50% da volemia estimada em 3 h

Atenção para paciente que temos que ter um limiar mais baixo para acionar protocolo de transfusão maciça:

  • Uso de anticoagulantes
  • Idosos
  • Uso de beta-bloqueadores

Lembrando que acionar o protocolo não significa realmente administrar essa quantia de hemoderivados, mas sim o fato de se prever que o paciente possa precisar devido a gravidade do quadro.

Como se executa um protocolo de transfusão maciça?

Outra questão que ainda não se tem uma resposta exata! Vários estudos já foram e estão sendo feitos na tentativa de se saber o melhor manejo.

Sabe-se que os fatores de coagulação não diminuem de maneira homogênea e há uma tendência a formação exagerada de trombina, além de que o nível de fibrinogênio pode se encontrar em níveis críticos em estágios precoces

O início precoce e rápido da transfusão balanceada de hemácias, plasma e plaquetas diminui a mortalidade na medida que ajuda a repor os fatores de coagulação.

O estudo clínico randomizado PROPPR comparou transfusão de hemocomponentes nas proporções de 1:1:1 vs 1:1:2 (plaquetas : plasma : CHAD) e mostrou que  o uso de hemocomponente na razão de 1:1:1 tinha menos sangramentos nas primeiras 24 h, mas sem diferença significativa na mortalidade em 24h a 30 dias se comparado com o uso na razão de 1:1:2 e sem maiores complicações associadas.

Além da transfusão de hemocomponentes, há outras medidas que podemos tomar em frente a um quadro de hemorragia com CIT.

No estudo CRASH-2, viu-se que o uso de ácido tranexâmico no trauma ajuda a diminuir a fibrinólise desencadeada na CIT e diminui a mortalidade, desde que utilizado em até 3 horas depois do trauma (se usado após 3 horas parece aumentar a mortalidade!). Usar na dose de 1 g em 10 minutos + 1 g em 8 h.

Administração de Fibrinogênio ou crioprecipitado é recomendada, embora haja evidências limitadas de seu benefício (mais dados de estudos militares).

Antes de iniciar a transfusão, importante coletar os exames que vão ajudar a avaliar a coagulopatia e programar o protocolo como tipagem sanguínea, hemoglobina, hematócrito, TP, kTTP, RNI, fibrinogênio, plaquetas, além de creatinina e eletrólitos, incluindo cálcio e magnésio.

O diagnóstico rápido e fidedigno da CIT é essencial, mas os testes de coagulação convencionais (TP, kTTP, INR) não expressam com acurácia a situação da coagulopatia, além de os resultados demorarem cerca de 50 minutos para ficarem prontos

Nos centros especializados em trauma há como se medir os fatores de coagulação durante a ressuscitação com exames point of care ( TEG e ROTEM), sendo possível fazer a reposição desses fatores de acordo com a real necessidade naquele exato momento.

Como essas medidas da funcionalidade da coagulação não estão disponíveis na maior parte dos hospitais e o desconhecimento da coagulopatia induzida pelo trauma ainda é prevalente, pacientes continuam a receber doses inadequadas dos fatores de coagulação e os índices de mortalidade continuam altos.

E os cristalóides…se aposentaram no trauma?

A tendência atual é uso mais restrito, recomenda-se infusão de volumes de pequenos bolus 250 ml de cristalóides (maior benefício em traumas fechados) como ponte até a transfusão de hemoderivados.

Leituras, sites e podcast complementares

Acute traumatic coagulopathy. J Trauma. 2003;54(6):1127–1130. doi: 10.1097/01.TA.0000069184.82147.06

Transfusion of plasma, platelets, and red blood cells in a 1:1:1 vs a 1:1:2 ratio and mortality in patients with severe trauma: the PROPPR randomized clinical trial. JAMA. 2015;313(5):471–482. doi: 10.1001/jama.2015.12.

The PRospective Observational Multicenter Major Trauma Transfusion (PROMMTT) study. J Trauma Acute Care Surg. 2013;75(1 Suppl 1):S1–S2. doi: 10.1097/TA.0b013e3182983876

Effects of Tranexamic Acid on Death, Vascular Occlusive Events, And Blood Transfusion in Trauma Patients With Significant Haemorrhage (CRASH-2): A Randomised, Placebo-Controlled Trial. Lancet 2010. PMID: 20554319

http://rebelem.com/proppr-randomized-clinical-trial/

http://resus.me/the-bleeding-trauma-patient/

http://www.stemlynsblog.org/whole-blood-in-trauma-st-emlyns/

http://rebelem.com/its-time-for-tranexamic-acid-txa-in-massive-hemorrhage/

https://emcrit.org/emcrit/severe-trauma-karim-brohi/

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