Desde o início da pandemia, múltiplos especialistas e sociedades científicas tem publicado orientações sobre o manejo destes pacientes, inclusive sobre o manejo das vias aéreas.
E muito embora ainda não saibamos muito sobre como controlar os mecanismos fisiopatológicos que invariavelmente deixam um paciente muito grave, sabemos até o momento que nada do que observamos implicou na mudança da anatomia das vias aéreas, e que a insuficiência ventilatória hipoxêmica e a redução da complacência pulmonar existem em outras patologias que já conhecemos e, portanto, já sabemos manejar.
Quando falamos mais especificamente sobre intubação, ainda observamos discordâncias com relação a alguns métodos e uso de acessórios (como a bendita da caixa acrílica), mas um consenso ressona nos textos: o paciente deve ser preferencialmente intubado pelo médico mais experiente.
E quem é esse médico? Muitos quando se aproximaram desse conceito pensaram automaticamente no médico mais velho ou com o maior numero de tubos no currículo ao longo da vida, e muitos mais pensaram no anestesista. Não é à toa que no Brasil e fora muitos serviços tem incluído times de anestesia como preferenciais para a intubação destes pacientes, ou como um time de suporte, caso algo aconteça de errado.
O que talvez falhamos em notar desde muito cedo, quando estas orientações foram publicadas por aí, é que o conceito de “intubador mais experiente” é absolutamente relativo, pois a experiência em intubação não é exclusivamente dependente do número de tubos que passamos com sucesso pelas cordas vocais.
Vamos pensar numa intubação de emergência, num paciente com COVID-19 em insuficiência ventilatória hipoxêmica, cujos pulmões tomados de vidro fosco e consolidações posteriores te sugerem que a complacência e as trocas gasosas estão muito prejudicadas, aquele clássico distúrbio ventilação/perfusão (V/Q) do tipo shunt: o paciente tem os leitos capilares adequadamente perfundidos, porém mal ventilados, já que aqueles alvéolos estão inflamados e tomados de secreções.
Quando vamos intubar o paciente, algumas coisas vem automaticamente na nossa cabeça e, em questão de poucos minutos, o plano está traçado:
- Pra que eu estou intubando esse paciente?
Que tipo de distúrbio está indicando a abordagem definitiva da via aérea? Insuficiência ventilatória? Predição de curso clínico desfavorável? Perda de patência da VA por rebaixamento no nível de consciência? Risco iminente de morte revertido por melhora da oxigenação?
- Esse paciente tem preditores de VA anatomicamente difícil?
Existe alguma característica física ou anatômica que possa dificultar os processos de: laringoscopia? Passagem de dispositivo supraglótico? Ventilação com bolsa-válvula-máscara? Cricotireoidostomia?
- Esse paciente é uma via aérea fisiologicamente difícil?
Ele está agitado? Tem dificuldade em pré-oxigenação por comprometimento pulmonar? Está hemodinamicamente instável? Tem hipoxemia ou hipercapnia severos? Tem acidose metabólica importante?
- Como eu vou pré-oxigenar esse paciente?
Ele se beneficia de VNI? Preciso sedá-lo para facilitar a pré-oxigenação? Há vantagem no uso de oxigenação apneica?
- Como vou posicionar esse paciente?
É possível sentá-lo para pré-oxigenação? Este paciente é obeso ou tem algum desordem anatômica complicada?
- Qual o melhor método de intubação para este caso?
É uma VA imediata? Sequência rápida é a melhor escolha? Devo intubá-lo acordado? Devo optar ao acesso cervical anterior como primeira escolha?
- Que drogas vou utilizar nesse caso?
Existem restrições ao uso da quetamina? Existe algum bloqueador neuromuscular ideal neste caso? Devo ter drogas vasoativas preparadas em caso de piora hemodinâmica?
- Caso o meu método de escolha falhe, tenho alternativas?
Tenho dispositivos supraglóticos preparados? Tenho material para realização de videolaringoscopia? Tenho arsenal para crico? SEI FAZER CRICO?
- Conheço o distúrbio ventilatório desse paciente?
Sei qual melhor forma de ventilá-lo após a intubação? Sei resolver assincronias e interpretar curvas e alarmes do ventilador? Sei interpretar uma gasometria e ajustar a ventilação de acordo?
- Sei lidar com intercorrências graves após a intubação?
Sei seletivar a VA em caso de lesão de traqueia ou hemoptise maciça? Sei diagnosticar pneumotórax por ultrassom? Sei indicar e realizar toracostomia? Sei reposicionar ou trocar o tubo? Sei interpretar alterações em sinais vitais e solucionar problemas? Sei identificar pioras clínicas ameaçadoras à vida e tratá-las de acordo?
- E se chegar um paciente igualmente grave ao mesmo tempo na sala de emergência?
Sei priorizar condutas? Sei delegar tarefas? Sei que tipo de ajuda chamar?
- Sei me comunicar com a minha equipe multiprofissional de forma eficiente?
Consigo garantir comunicação efetiva? Consigo realizar o procedimento garantindo a segurança de todos? Consigo garantir o desempenho esperado de cada componente humano do atendimento?
- Sei manter a calma e focar meus esforços de forma ordenada e sem tumultuar o procedimento?
A tudo isso, visto o nosso contexto de milhares de programas de residências com os seus currículos em stand-by, eu acrescentaria uma questão muito importante:
Se estou num hospital-escola, sei compartilhar meu processo cognitivo com os meus aprendizes e minha equipe multiprofissional? Consigo garantir que situações de emergência também se tornem momentos importantes de aprendizado? Consigo ser um bom exemplo profissional?
A intubação de um paciente, independente da sua gravidade, é um processo cognitivo complexo que, mais do que experiência numérica, exige muito preparo.
É compreensível que, devido à velocidade com que fomos acometidos por uma doença complexa e grave, tivemos que, como comunidade médica, rapidamente desenvolver protocolos e diretrizes que embasassem nossas condutas para garantirmos o melhor desfecho possível ao paciente. Mas ainda sim, insisto na relativização da experiência como uma referência de qualidade e minimização de falhas.
A uma via aérea complexa devemos oferecer um profissional igualmente preparado, cuja experiência contemple o endereçamento das questões acima de forma qualificada e natural.
E aqui, deixo uma reflexão: será que o intubador mais experiente para um paciente com COVID-19 é realmente o profissional com mais tubos no currículo? Ou é aquele que desde o início da sua formação, sem imaginar que iríamos viver uma pandemia, tem exercitado diariamente todo esse processo complexo que envolve o cuidado do paciente grave, muitas vezes em ambientes extremamente desfavoráveis?
Como Emergencistas, somos ensinados desde sempre a sermos extremamente pessimistas quando conhecemos nosso paciente, sempre imaginando os piores cenários, com o intuito de estarmos igualmente preparados e jamais surpreendidos por situações extremas. Treinamos a nossa cabeça a pensar bem, pensar rápido, não nos desesperarmos. Exercitamos diariamente o processo de transformar nossas preocupações e medos em questões que desafiam o nosso raciocínio clínico, abrindo opções de diagnósticos e abordagens. E mesmo quando somos surpreendidos, aprendemos que até o imprevisível é controlável.
Que a pandemia não nos adoeça com a Síndrome do Impostor.
Co-autor convidado: Dr Bruno Marques (R3 de Medicina de Emergência do HCFMUSP)